escrito por Willian de Vargas
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Casos de vazamento de dados, como o chamado "Mãe de Todos os Vazamentos" (MOAB) — revelado em janeiro de 2024 e que expôs 26 bilhões de registros de usuários em todo o mundo — e o ciberataque à Repsol, multinacional espanhola do setor de energia, que comprometeu a base de dados de clientes na Espanha, evidenciam a magnitude do risco. Essas ocorrências expõem milhões de pessoas a ameaças como fraudes financeiras, roubo de identidade e danos à reputação.
Diante desse cenário, a proteção de informações sensíveis tornou-se prioridade para indivíduos, empresas e governos. Dados como números de documentos, registros médicos, informações financeiras e padrões comportamentais podem ser indevidamente utilizados caso caiam em mãos erradas — com impactos que vão desde a perda de credibilidade de serviços digitais até prejuízos financeiros irreparáveis.
É nesse contexto que a anonimização de dados surge como uma solução para equilibrar o uso estratégico de informações com a preservação da privacidade. Essa técnica permite que organizações utilizem dados para análises, pesquisas e desenvolvimento de tecnologias sem comprometer a identidade dos indivíduos.
Mas afinal, o que é anonimização de dados? Como aplicá-la de forma eficiente? E quais os principais desafios associados?
A anonimização de dados é o processo que transforma informações pessoais de maneira irreversível, impossibilitando a identificação do indivíduo ao qual elas pertencem. Diferentemente da pseudonimização — que apenas substitui identificadores diretos por pseudônimos — a anonimização garante que, mesmo com o cruzamento de informações, não seja possível reverter o processo.
Um exemplo prático é o mascaramento de dados, como a remoção parcial de números de documentos ou a substituição de nomes por caracteres aleatórios em uma base de dados. Assim, mesmo em caso de vazamento, a utilidade desses dados para finalidades ilícitas é consideravelmente reduzida.
Proteger informações sensíveis é fundamental para preservar a privacidade dos indivíduos e evitar prejuízos financeiros, danos à reputação e riscos legais.
Sob a ótica legal e ética, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil exige medidas adequadas para assegurar a privacidade e a segurança dos dados pessoais. A anonimização se destaca como uma estratégia eficaz que permite às empresas manterem a conformidade com a legislação e, ao mesmo tempo, utilizarem dados de forma segura para inovação e análise.
Existem diversas técnicas que podem ser empregadas para realizar a anonimização de dados, que variam de acordo com o nível de proteção necessário e a finalidade do uso das informações.
A anonimização é amplamente aplicada em diferentes setores para garantir a segurança das informações ao mesmo passo que permite o uso dos dados para diferentes fins:
Como pudemos ver, a anonimização de dados é uma ferramenta essencial para a proteção da privacidade e segurança das informações no mundo digital. A seguir, abordarei um caso de uso desta técnica no setor de saúde, com a base de dados MIMIC, e os desafios enfrentados na implementação da anonimização de dados.
Um ótimo exemplo da aplicação de técnicas de anonimização de dados sensíveis é o banco de dados biomédicos MIMIC (Medical Information Mart for Intensive Care), desenvolvido pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) em parceria com o Beth Israel Deaconess Medical Center e disponibilizado por meio da plataforma PhysioNet. Desde sua criação, o MIMIC evoluiu significativamente: a primeira versão, o MIMIC-I, foi lançada em 2003 com dados de internações em UTI de um único hospital. Posteriormente, o MIMIC-II introduziu melhorias na padronização e suporte a estudos retrospectivos; o MIMIC-III, lançado em 2015, ampliou substancialmente a base, incluindo mais de 60 mil admissões em UTI e notas clínicas desidentificadas, possibilitando pesquisas com Processamento de Linguagem Natural (PLN).
Atualmente, a base encontra-se na versão MIMIC-IV, publicada em 2024, com uma estrutura modular e moderna que abrange dados clínicos anonimizados de aproximadamente 315 mil pacientes, correspondendo a mais de 524 mil admissões hospitalares entre 2008 e 2019 no Beth Israel Deaconess Medical Center. O MIMIC-IV possui dois módulos principais: o módulo HOSP, com informações administrativas e clínicas gerais, como resultados laboratoriais, prescrições, procedimentos e notas clínicas; e o módulo ICU, que concentra dados granulares coletados durante as internações em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), incluindo sinais vitais monitorados em tempo quase real. No total, o MIMIC-IV conta com 31 tabelas e mais de 600 milhões de registros, sendo uma das maiores bases públicas de dados biomédicos do mundo. Uma das grandes novidades do MIMIC-IV é a inclusão de registros do departamento de emergência, o que amplia consideravelmente as possibilidades de análise e estudo das trajetórias clínicas, desde a entrada do paciente até o desfecho final
Esse banco de dados é amplamente utilizado em pesquisas acadêmicas e científicas ao redor do mundo, sendo um recurso valioso para o desenvolvimento de modelos de aprendizado de máquina, estudos epidemiológicos, testes de hipóteses clínicas e validação de protocolos médicos. Sua relevância se dá não apenas pela riqueza e granularidade dos dados, mas também por ser uma das poucas bases públicas que oferecem esse nível de detalhe em dados biomédicos, contribuindo diretamente para avanços na medicina baseada em evidências.
Dada a sensibilidade das informações contidas no MIMIC — que envolvem dados reais de pacientes —, a anonimização desempenha um papel fundamental em sua disponibilização pública. A equipe responsável pela curadoria do banco realiza um processo rigoroso de desidentificação, seguindo padrões internacionais de privacidade, como a Health Insurance Portability and Accountability Act (HIPAA), legislação dos Estados Unidos que regula o uso e a divulgação de informações médicas protegidas.
Nesse processo de anonimização, dados pessoais como nomes, números de telefone, endereços, números de documentos oficiais, e outros identificadores diretos são completamente removidos ou substituídos por códigos aleatórios. Por exemplo, o número de prontuário de cada paciente é substituído por um identificador anônimo chamado subject_id, que permite a ligação segura entre as tabelas sem revelar a identidade do paciente.
Além disso, técnicas de generalização e ofuscação temporal são aplicadas. Um exemplo clássico é o tratamento das datas: as datas de admissão, alta, exames e procedimentos são deslocadas por um número aleatório de dias, consistente dentro de cada paciente, mas diferente entre pacientes. Assim, preserva-se a sequência e a duração dos eventos clínicos (por exemplo, "alta após 5 dias de internação"), mas não é possível determinar a data real em que ocorreram. Por exemplo, uma internação que originalmente ocorreu em março de 2016 pode ser deslocada para julho de 2014 no dataset anonimizado.
Outro exemplo prático envolve a idade dos pacientes: indivíduos com 90 anos ou mais são agrupados em uma única categoria: "90 ou mais". Isso evita a reidentificação de pacientes muito idosos, cujo perfil demográfico pode ser mais raro e, portanto, mais suscetível à identificação mesmo após a remoção de outros dados.
Por fim, também são aplicadas técnicas de restrição e controle de acesso. Diferente de bases de dados públicas abertas, o acesso ao MIMIC requer a conclusão de um curso de ética em pesquisa e a assinatura de um termo de responsabilidade pelo uso dos dados, garantindo que pesquisadores utilizem as informações apenas para fins científicos e com o devido compromisso com a privacidade dos indivíduos envolvidos.
A área da saúde, no entanto, impõe desafios significativos à anonimização. Informações biomédicas são, muitas vezes, altamente granulares e interconectadas, o que pode facilitar a reidentificação de pacientes mesmo após a remoção de identificadores diretos. Variáveis como combinações de diagnósticos raros, datas de internação e tratamentos específicos podem, inadvertidamente, permitir que um indivíduo seja identificado. Por isso, a anonimização nesse setor precisa equilibrar, cuidadosamente, a proteção da privacidade com a preservação da utilidade dos dados para pesquisa.
O uso do MIMIC demonstra como a anonimização, quando aplicada com rigor técnico e ética, pode viabilizar o acesso a dados clínicos sensíveis sem comprometer a privacidade dos pacientes. Essa prática não apenas protege os direitos dos indivíduos, mas também impulsiona avanços científicos e tecnológicos que beneficiam toda a sociedade.
A anonimização de dados é uma das ferramentas mais importantes para proteger a privacidade em um mundo orientado por dados. Com o avanço de tecnologias como inteligência artificial e machine learning — que dependem de grandes volumes de informação —, equilibrar privacidade e inovação é um desafio cada vez mais urgente.
Mais do que uma exigência legal, anonimizar dados é uma escolha ética. É respeitar os indivíduos por trás das informações e garantir um ambiente digital mais seguro, transparente e sustentável.
O futuro da anonimização depende da capacidade de aliar rigor técnico e sensibilidade humana. Só assim será possível promover o uso responsável dos dados e impulsionar avanços que beneficiem toda a sociedade.